Conflito de civilizações
O Oriente Médio que o Ocidente insiste em enxergar em sua face mais real
Jorge Mortean*

Desmistificar o Oriente Médio tem sido uma tarefa árdua, geralmente reservada a grandes nomes do Orientalismo acadêmico, como o anglo-palestino Edward Said, ou o britânico Bernard Lewis, ou de grandes jornalistas especialistas na região, como o britânico Robert Fisk, ou o norte-americano Stephen Kinzer, com uma vasta experiência de campo.
Quando vivi por três anos no Irã, de 2009 a 2012, viajei extensamente por toda a região. Dos paradigmas que eu mesmo quebrei, o mais importante foi que, desde a descoberta do petróleo, a banalização de odaliscas, sultões e dos contos das mil e uma noites – até uma nova onda de fundamentalismo político baseado na deturpação do islã, nascido no mundo pós-Guerra Fria – toda essa nossa imagem do Oriente Médio em nada se reflete na realidade local, no cotidiano das pessoas que ali vivem, mas refletem o modo como nós, ocidentais, queremos enxergá-los: de acordo com nossos interesses políticos.
Ouso, então, oferecer outra versão: a de quem vive localmente e passou a enxergar o Ocidente com os olhos deles. Por isso, a partir deste ponto, rascunho cinco tópicos gerais que facilitarão a leitura desta conflituosa relação entre Ocidente e Oriente Médio.
COMO O OCIDENTE VÊ O ORIENTE?
Desde sempre, o Oriente é fonte de inspiração e conhecimento para o Ocidente. A escrita, o alfabeto, os números, as técnicas agropecuárias, a Astronomia, a Química, a Farmacêutica, a Geometria, a Álgebra, entre tantos outros campos científicos, tiveram suas milenares origens na região atualmente conhecida como Oriente Médio.
Desde sempre, o Oriente é fonte de inspiração e conhecimento para o Ocidente. A escrita, o alfabeto, os números, as técnicas agropecuárias, a Astronomia, a Química, a Farmacêutica, a Geometria, a Álgebra, entre tantos outros campos científicos, tiveram suas milenares origens na região atualmente conhecida como Oriente Médio.
Enquanto a Europa era devastada por guerras intermináveis entre bárbaros, com a expansão do Império Romano, a região florescia com seus conhecimentos. Tudo estava muito calmo, até que Roma decidiu empenhar uma “guerra santa” (as famosas Cruzadas), em uma época na qual o Império Muçulmano vivia em grande expansão – majoritariamente muçulmano, sim, porém com uma pacífica convivência entre todos os credos que nele habitavam. Os ocidentais que logo viram um Oriente Médio decadente, após recuar, por conta das Cruzadas, e excluído do desenvolvimento mercantil-industrial que florescera na Europa – com superioridade em seu poderio militar e abundância financeira – agora se encontravam em posição política de subjugar todo o resto do mundo, incluindo eles, os meso-orientais.
Subjugar era mostrar a “inferioridade” de outras culturas e que os padrões mundiais deveriam ser aqueles ditados pelo Ocidente majoritariamente cristão. Cristão, sim, mas também colonizador, escravocrata, preconceituoso e usurpador.
A Europa, e logo os Estados Unidos, projetava sua nova sociologia e lógica mercantil no Oriente Médio, justamente na região que, séculos atrás, lhes servira de berço humanitário. Essa região havia “ficado para trás na História” e “deveria ser civilizada”.
De pronto, nasceram alianças com as elites de califados e monarquias, que se valeram da posição geograficamente estratégica para comandar o comércio e as finanças na encruzilhada do mundo.
Enquanto satisfazia as vontades europeias, o Ocidente docilmente lhes compensava com jantares suntuosos em Paris, desenhos do Aladim e sua lâmpada mágica nas telas de cinema, a tradução dos hieróglifos egípcios feita por arqueólogos britânicos, a propaganda do misterioso mundo faraônico e da grandeza da poesia persa.
PETRÓLEO: RECURSO VITAL, RECURSO MORTAL
A descoberta das utilidades industriais veiculadas ao refino do petróleo só veio a reforçar tal ideologia: orquestrar golpes militares, forjar monarquias e estruturar elites pró-ocidentais. Atendendo às necessidades ocidentais, o pagamento seria feito prontamente, “em cash”.
A descoberta das utilidades industriais veiculadas ao refino do petróleo só veio a reforçar tal ideologia: orquestrar golpes militares, forjar monarquias e estruturar elites pró-ocidentais. Atendendo às necessidades ocidentais, o pagamento seria feito prontamente, “em cash”.
França, Reino Unido, Rússia e Estados Unidos desenharam limites territoriais como quem rascunha um guardanapo após uma formatura de graduação, porém sem jamais esquecer seus interesses. As elites locais abarrotaram-se de dólares, tinham seus ícones culturais vendidos a preços exorbitantes mundo afora e eram convidadas a participar do jet set internacional. Entretanto, e o povo?
Foi aí que o Ocidente errou. Na oportunidade de promover igualdade de direitos, justiça social e senso democrático, as potências ocidentais acabaram perpetuando justamente o contrário.
Foi pelo ralo essa chance de melhora socioeconômica e estabilidade política e o que se viu (e ainda se vê) é o mesmo jogo: o Ocidente armando politicamente todos os lados – independentemente de qual – para seu proveito econômico, pagando “em cash”.
E as elites que ousaram desafiar a intervenção ocidental não foram poupadas – elas caíram no ostracismo, tiveram sua imagem demonizada e seus países sancionados. Vide a Revolução Islâmica de 1979, no Irã, que aniquilou o maior aliado norte-americano na região até então, o xá Reza Pahlavi, e instaura um regime não mais democrático, porém totalmente antiocidental.
Vide Saddam Hussein, outrora forte aliado ocidental, enforcado pelas mãos desses mesmos ocidentais, após décadas de isolamento político-econômico. Pior é a Arábia Saudita, que, mesmo até hoje uma grande aliada política norte-americana, é também uma das campeãs em desrespeito aos diretos humanos, propagando o terrorismo político aos seus próprios cidadãos.
As elites locais reproduzem o que há de pior daqueles ocidentais que os financiam em matéria de civilidade, copiando-os. Cá entre nós, nem França, nem Reino Unido, muito menos Rússia ou Estados Unidos, são santos em suas políticas externas. Aliás, vale dizer que não há mocinhos em relações internacionais.
E COMO O ORIENTE MÉDIO VÊ O OCIDENTE?
Do mesmo modo que, para o Ocidente, há duas visões antagônicas pré e pós-descobrimento do petróleo, para o Oriente Médio – essa divisão temporal é igualmente válida, dentro de sua percepção dos ocidentais. Antes do começo do século passado, num período antecedente ao surgimento da indústria petrolífera, o Oriente Médio sempre esnobou o Ocidente por ter nos emprestado grande parte da base do conhecimento científico que hoje dominamos e desenvolvemos, bem como lhes era incompreensível nossos conflitos de cunho étnico-religioso, visto que aquela região fora o berço de três grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islã, nesta ordem, sendo estas duas últimas as maiores religiões monoteístas mundiais atualmente.
Do mesmo modo que, para o Ocidente, há duas visões antagônicas pré e pós-descobrimento do petróleo, para o Oriente Médio – essa divisão temporal é igualmente válida, dentro de sua percepção dos ocidentais. Antes do começo do século passado, num período antecedente ao surgimento da indústria petrolífera, o Oriente Médio sempre esnobou o Ocidente por ter nos emprestado grande parte da base do conhecimento científico que hoje dominamos e desenvolvemos, bem como lhes era incompreensível nossos conflitos de cunho étnico-religioso, visto que aquela região fora o berço de três grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islã, nesta ordem, sendo estas duas últimas as maiores religiões monoteístas mundiais atualmente.
A paz que lhes fora arrancada com a chegada da tecnologia ocidental que fora incrustada em seu solo, em prol da exploração petrolífera, trouxe ao Oriente Médio tempos turbulentos.
Com britânicos e franceses e, posteriormente, norte-americanos, cravando suas garras nesse recurso energético tão vital e tão abundante naquela região, o Oriente Médio viu-se envolto em dois tipos de ranços com relação aos ocidentais: um na esfera da política local e outro com relação à população local.
As elites locais, criadas pelo próprio Ocidente, viram-se obrigadas, por manter a ordem política, a ceder seus recursos. Dentro dessa perspectiva, são obrigadas a tolerar o Ocidente dentro de seus territórios, utilizando tecnologias próprias para arrancar seu recurso, o que acabou gerando uma amarga tolerância.

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